sábado, 25 de maio de 2019

Mãe da Amapola se apaixona por Pirata

Cleonice acaba de chegar em casa depois de passar a semana toda na casa da patroa. Dorme durante a semana na casa em que trabalha, voltando para o barraco dos filhos apenas aos domingos. Amapola dorme agarrada a Nenê, seu filho caçula. A casa está arrumada, a louça limpa e as crianças dentro de casa. Tarefas de Amapola, sempre feitas com capricho. Na sala,  Pedro - seu outro filho de 13 anos - está dormindo no sofá (que é a sua cama) com a televisão ligada. 

Cleonice desliga a televisão e vai para o banheiro trocar de roupa. Passa da meia-noite. Deita na mesma cama que está Amapola e Nenê. Ao lado no chão, em um colchão de solteiro, estão Michele de 10 anos e Estéfane de 8. Os outros três filhos estão dormindo, no quartinho que é menor.

Cleonice está cansada, mas não esquece de Pirata.

- “Que homem, tão diferente de todos que eu amei”, pensa ela. Foram ao boteco juntos depois que largou o trabalho. Além de pedir pastel, Pirata só bebeu cerveja. Ele não gosta de cachaça e nem bebe até cair. Depois caminharam até um hotelzinho e se amaram, com paixão, fazendo juras de amor.
Pirata é mais jovem que Cleonice, não é casado, mas tem duas filhas meninas. Uma com cada mulher. Pirata conhece os segredos das mulheres. Fala o que elas gostam de ouvir. Sabe como tratar as jovens e também as mais velhas. Ele elogiou o corpo de Cleonice, que – devido a labuta diária  - ainda é firme.

Eles se conheceram no açougue. Ele é entregador do frigorífico, carrega as carcaças de boi nas costas e por isso é muito musculoso, como Cleonice gosta. A primeira vez que se viram, ela fazia a compra da semana para a patroa. Ficaram se olhando. Cleonice não ficou impressionada com o avental de Pirata todo sujo de sangue e nem com o seu olho direito que é meio caído (por isso, o apelido). Pirata fez um gracejo. Na outra semana, perguntou o nome dela. E na terceira, perguntou onde ela trabalhava. Depois disso, toda sexta-feira ou sábado, eles se encontram no boteco e depois vão até o hotelzinho. Pirata ainda não quis dormir na casa de Cleonice.

- “Respeito, Nice... Respeito. Você tem filha menina-moça e eu não quero que pensem errado de mim. Sou moço direito” – disse de forma séria e batendo a mão no peito. Cleonice está cada dia mais apaixonada e é capaz de fazer qualquer coisa para ficar com Pirata. Quando estão juntos, Pirata usa camisinha, coisa que ela estranhou. Nunca tinha usado. Coisa diferente para a época e para o mundo em que vivem. Pirata não quer ser mais pai.

- “Tenho duas meninas. E você tem 9 filhos. Para quê mais um?” – perguntou a primeira vez que ficaram juntos.

Cleonice olha para Amapola e para Nené e se questiona porque Pirata não é pai de todos eles? Poderiam ter sido felizes desde sempre. Pensa na quantidade de homens que ela já teve, desde seus 11 anos quando foi feita mulher pelo tio. 

O tio... como será que está aquele Diabo? No começo, ela acreditou ele realmente gostava dela. Sempre dava uma bala, uma moeda, uma boneca... Ele gostava de passar as mãos em suas partes íntimas e se ela ficava quieta, sempre ganhava alguma coisa. Depos pedia para que ela colocasse a mão também em algumas partes do corpo dele.

Um dia, sozinhos em casa, ele avançou, tapou a boca dela com as mãos e a estuprou. Doeu muito, mas Cleonice não chorou. Quando contou para a mãe o que tinha acontecido, sua mãe deu uma bofetada no rosto da garota e a expulsou de casa. Na verdade, um casebre, que ficava na roça, interior de Minas Gerais. Sua mãe, irmã do tio que abusara dela, a acusou de ter se oferecido ao tio. Cleonice saiu de casa com uma trouxa de roupas e nunca mais voltou.

Ela se orgulha de não ter vendido o corpo para sobreviver. Logo após ser expulsa conseguiu trabalho de empregada doméstica em casa de família. No começo sem salário, depois ganhando pouco, mas o suficiente para não morrer de fome. Só se apaixonou de novo aos 15 anos, quando foi morar no Rio de Janeiro, junto com a família que ela trabalhava na época. Conheceu o pai da Amapola, por um acaso. Ele trabalhava no Porto e tinha ido a casa da patroa para entregar alguma coisa. Ele era forte e muito musculoso. Por dias, ela ficou com a imagem dele na cabeça. Um dia, quando foi passear com a filha da patroa, viu que o Estivador a estava seguindo. Nice convence a menina, de quem era babá, de tomar sorvete e foi encontrar com o homem. Ela se apaixonou e se entregou para ele, agora sentindo bem à vontade.

O Estivador a procurava uma ou duas vezes por mês e sempre faziam amor nas esquinas, atrás dos carros, em qualquer beco. E assim ficou grávida. Uma gravidez descoberta apenas aos 6 meses. Ela era franzina, suas regras irregulares e quando a barriga começou a mexer ele que fez o alerta. A patroa ficou louca com a novidade. Disse que ficaria com Cleonice até o bebê nascer, depois ela que encontrasse outro lugar.

Amapola nasceu com 8 meses, pequena, raquítica e quase morreu. O Estivador deu o nome de Amapola porque esse era o nome da sua mãe. Uma mulher forte que já tinha morrido e ele achou que isso salvaria a menina. Quando saíram da maternidade, o Estivador levou as duas para um quartinho sujo perto do porto e ainda cuidou das duas por mais quatro meses. Não registrou a menina, mas se sentiu pai. Depois sumiu no mundo. Por um tempo, Cleonice ainda recebeu de um moleque sujo um envelope com dinheiro, sempre escrito Amapola. Quando Amapola completou 1 ano os envelopes pararam de ser entregues.

Então Cleonice precisou sair do quartinho e arranjar emprego. Com o pouco dinheiro que tinha, viajou de carona para São Paulo e conseguiu um lugar na favela que mora até hoje. Deixava Amapola com a vizinha, Dona Dulce (mãe do Lucas) e ia trabalhar. Pouco mais de dois meses, se apaixonou pelo pai de Pedro e logo estava grávida. Esse foi um traste. Quando descobriu a gravidez, deu uma surra em Cleonice e disse que nunca engravidaria uma mulher da vida. Pedro nasceu e desde pequeno se mostrou sangue ruim. O parto foi difícil, quase 12 horas de sofrimento e quando viu o menino, sentiu uma aversão que dura até hoje.

E assim foi se apaixonando e tendo filhos. Filhos diferentes de pais diferentes. Fora aqueles homens que ela amou e não ficou grávida. Ela mesma não entendia como uma pessoa que nunca recebeu amor, pode ter tanto amor para dar. E agora aparece Pirata, oferecendo um amor calmo que ela sempre desejou.

Nice, como gosta de ser chamada, faz a promessa de ser feliz com Pirata. Agradece por Amapola existir. Assim como o pai, a menina é forte e cuida de todos a seu redor. Cleonice pode trabalhar, colocar o pouco dinheiro dentro de casa e aproveitar Pirata.

Dorme uma noite sem sonhos e acorda cedo para cuidar da casa. Só teria sábado para fazer o que Amapola ainda não consegue. Domingo terá festa na casa dos patrões e eles exigiram que Nice esteja lá, sem ganhar hora extra ou algum dinheirinho. Sua paga serão os restos da festa que serão entregues aos seus filhos.



terça-feira, 21 de maio de 2019

Amapola, a menina que queria ser remédio

Amapola conhece pouco sobre a sua origem. Mora com sua mãe biológica e seus 8 irmãos, que não são filhos do mesmo pai. Ela é a mais velha e por isso se sente responsável pelos pequenos.

A responsabilidade cobra um preço muito alto. Amapola estudou até a 5º série do primeiro grau (como era denominado o ensino fundamental, em meados dos anos 80). Sempre com fome e cansada, pouco se interessou pelas letras ou pelos números. Só gostava mesmo era de ouvir as histórias da professora de Geografia.

A doce professora Neusa falava de um país com desejo de ser grande, mas que vive há anos em uma triste e sombria realidade, em que muitos passam fome. Mostrava no mapa as regiões onde as pessoas mais pobres moravam. E falava da seca, da miséria e de coronéis que ganhavam dinheiro com esse inferno.

A professora contava suas histórias em sussuros, com medo de ser descoberta. Amapola, apesar de não entender que país lindo e triste é aquele, se sente parte da jornada de luta.
As histórias da professora de geografia, no entanto, não tiveram força para segurar Amapola na escola. Seu desempenho ruim, a fez repetir os estudos por dois anos. Com isso, decorou as histórias da Dona Neusa, mas desistiu de frequentar a escola.

Amapola não tem paciência para os livros onde as histórias são guardadas. Então prefere criar suas próprias, com uma imaginação solta, amarrando conhecimentos que ela não sabe que tem. Essa é sua arma, seu remédio para atrair a atenção dos seus irmãos. Ela os deixa quietos e fascinados quando a mãe está deitada com mais um pai, que irá morar com eles até o próximo caçula nascer. E depois esse homem - que a mãe acredita ser um salvador - irá partir para nunca mais voltar.

Amapola ou Ampola
Amapola não tem curiosidade em relação ao seu nome, que ama e odeia na mesma proporção. Só sabe que foi um presente do pai, um estivador do porto. Ele escolheu porque Amapola, a verdadeira, era a avó daquela menina frágil. E achou que a homenagem - à mulher forte que o colocou no mundo -  poderia abençoar aquele bebê raquítico. O estivador forte, bonito e dono do mundo (como ela gosta de imaginar) foi embora, levando consigo a história daquela mulher e também do nome.

Quando criança, um dos piores sofrimentos de Amapola vinha do seu nome. Seus amigos o achavam feio. Para piorar, Amapola era tímida e magricela, sempre um convite para a transformar na melhor piada do grupo. Seu vizinho Lucas, -  morador da mesma favela desde que se conhecem por gente  -, a chamava de Ampola. Ampola de vacina, ampola de remédio, ampola de injeção. Assim, Amapola acreditou que seu nome significava veneno, ruim e amargo.

Para conseguir sobreviver à miséria e ao nome, acredita que é uma ampola de remédio, mas do bem, que a gente compra na farmácia. Com toda a sua inocência sonhadora, acrescenta mentalmente gotas daquele remédio à comida dos irmãos. Na sua fé inabalável, é capaz de curar e acredita que foram as gotas que salvaram o atual caçula. Aos 8 meses, Nenê (assim que o chamam) teve uma doença ruim. Amapola ou Ampola, como ela gosta de ser, fez de tudo para salvar o menino. Sempre imaginando que na água da mamadeira ou na papinha, ela acrescentava um pouco da ampola da Amapola.

Ampola se descobre Amapola
Aos 14 anos, Amapola chega à adolescência. Sente-se menina no corpo e mulher na obrigação. Lucas, com 17 anos, se sente adulto e poderoso. Mundos opostos, separados apenas por um muro. Ela... firme na jornada de dona de casa e mãe de 8 irmãos. Lucas, um esperto e inteligente negociador (apesar da falta de estudos), se destaca na boca de fumo. Está sempre bem vestido com “roupas de marca” , tem sua arma e sua moto.

Amapola ama Lucas. Em suas histórias, Lucas é sempre o salvador, o príncipe, o guerreiro inalcançável, em seu castelo... do tráfego. As pernas da Amapola tremem quando ouve Lucas gritar: 

- “Lá vai a Amapola, minha ampola de veneno”. 

Em seu mundo tacanho, Amapola não consegue entender que Lucas faz aquilo para chamar sua atenção, porque também a deseja. Um desejo carnal que, para um adulto de 17 anos, pode ser entendido como amor.

Dias desses, Amapola vai a venda comprar arroz, feijão e mais alguma pouca coisa, quando encontra Lucas. O menino - que acredita ser  homem - se aproxima com um gingado malandro e fala no ouvido da garota:

-“Amapola, minha ampola de veneno. Você é mulher agora. Mistura de flor e veneno. Você sabia que seu nome é de flor? Flor linda, mas com espinhos. Quero que você venha morar no meu jardim.”-  Lucas a beija na nuca e vai embora. Deixando Amapola perdida. 

Aquele gesto provoca uma série de sensações e sentimentos que ela desconhece. Amapola se sente mulher desde então. Olha com mais cuidado para seu rosto e corpo no único espelho do banheiro.

Os dias são angustiantes para ela agora. Espera há dias por um novo encontro. Mas não ouve nenhum sinal de que ele está na casa vizinha. Decide então desvendar o significado do seu nome. Vai até a biblioteca pública do bairro e - com vergonha por ser novata naquele ambiente - pede ajuda. Uma mulher oferece dois livros e um dicionário. Amapola acha a procura difícil... sua leitura é frágil. Encontra algo como “Amapola planta arbustiva, armada de espinhos e com folhas achatadas e flores solitárias”.

- "Solitárias... Solitárias..." - isso ela entende.

No livro de botânica, vê a foto de um campo repleto de Amapolas vermelhas. 

- "Que lindas!" - pensa. 

No outro livro vê uma amapola amarela, em solo brasileiro, com suas pétalas finas e sobrepostas nas beiradas. Que frágil...

- "Frágil... Frágil..." - isso ela entende também.

Descobre que Amapola é uma palavra com origem no latim (sabe-se lá o que significa isso) e que em italiano significa “bela flor”. E que em espanhol amapola é também papoula, aquela planta que se transforma em uma espécie de droga. Droga... Lucas aparece novamente na sua mente.

Todas aquelas informações a deixam atônita. 

- "Como um nome pode ter tanta força e beleza" - fica perplexa. Sorri porque se sente enfim importante. Importante para seu pai, que a presenteou com o nome, e também para Lucas que descobriu que ela é Amapola, nome de flor.

Em casa prepara o jantar dos irmãos, colocando além de sabor, gotas da ampola da Amapola. Decide que jantariam na pequena mesa e não com os pratos apoiados no colo como de costume. Arruma a mesa, pratos e copos trincados que têm a sua disposição. Coloca garfos e colheres, prepara o suco e chama os irmãos. Alguns gostam da novidade e outros reclamam. Amapola é irredutível. Todos precisam sentar, meio apertados, mas como uma família.

Mal terminam a refeição, ouvem uma gritaria, barulhos de sirene, tiros e ordem para que não saiam de casa. É a Rota que invade a favela, rotina que todos conhecem, mas que pela primeira vez acontece tão perto. Amapola fica primeiro aliviada por ter exigido que todos estivessem em casa para o jantar. Em segundos lembra de Lucas... claro... Lucas. 

Com certeza, a invasão da polícia tem Lucas como motivação. Há mais de 5 dias que Lucas não aparece. Sons de passos, gritos e uma porta sendo arrombada... mais tiros. Amapola esconde os menores embaixo da mesa, corre para debaixo do sofá e pede que os outros se escondam também. Minutos intermináveis de pânico. Amapola só consegue pensar em Lucas e no encontro no mercadinho. Começa a rezar, mas não lembra a oração. Passa a repetir o seu mantra:

- “Amapola, minha ampola de veneno. Amapola, minha ampola de veneno. Amapola, minha ampola de veneno".

Chora compulsivamente. Tristeza por não poder ser flor no jardim de Lucas. Tristeza pela vida medíocre. Tristeza pela pobreza extrema que vivem. Tristeza por não poder sonhar com um futuro. Tristeza por não conhecer a sua própria história.

Acorda do delírio pelo caçula Nenê, que passa as mãozinhas pelo seu rosto e diz: 

- “não choia, a poliça foi boia”. 

Ela levanta e corre para o portãozinho. Lucas foi baleado pela polícia e levado para que a Rota termine o serviço. Sabe que será mais um moleque a estampar os jornais de amanhã. Pobre, preto, favelado e entregue pelos próprios traficantes como forma de acalmar a sociedade.

Amapola quer parar com esse desatino, em que a vida bandida promete um futuro e ao mesmo tempo entrega a juventude para o carrasco. Com os olhos cheios de lágrimas, vê do outro lado da rua, Pedro - seu irmão de 13 anos -, negociando com um grupo...

Ela sabe que Pedro foi escolhido para ser o novo Lucas na boca. Amapola segura o grito que gostaria de dar, porque sabe que para esse problema não pode usar gotas da sua ampola. Só resta voltar para dentro de casa e chorar como uma Amapola solitária e frágil.