terça-feira, 21 de maio de 2019

Amapola, a menina que queria ser remédio

Amapola conhece pouco sobre a sua origem. Mora com sua mãe biológica e seus 8 irmãos, que não são filhos do mesmo pai. Ela é a mais velha e por isso se sente responsável pelos pequenos.

A responsabilidade cobra um preço muito alto. Amapola estudou até a 5º série do primeiro grau (como era denominado o ensino fundamental, em meados dos anos 80). Sempre com fome e cansada, pouco se interessou pelas letras ou pelos números. Só gostava mesmo era de ouvir as histórias da professora de Geografia.

A doce professora Neusa falava de um país com desejo de ser grande, mas que vive há anos em uma triste e sombria realidade, em que muitos passam fome. Mostrava no mapa as regiões onde as pessoas mais pobres moravam. E falava da seca, da miséria e de coronéis que ganhavam dinheiro com esse inferno.

A professora contava suas histórias em sussuros, com medo de ser descoberta. Amapola, apesar de não entender que país lindo e triste é aquele, se sente parte da jornada de luta.
As histórias da professora de geografia, no entanto, não tiveram força para segurar Amapola na escola. Seu desempenho ruim, a fez repetir os estudos por dois anos. Com isso, decorou as histórias da Dona Neusa, mas desistiu de frequentar a escola.

Amapola não tem paciência para os livros onde as histórias são guardadas. Então prefere criar suas próprias, com uma imaginação solta, amarrando conhecimentos que ela não sabe que tem. Essa é sua arma, seu remédio para atrair a atenção dos seus irmãos. Ela os deixa quietos e fascinados quando a mãe está deitada com mais um pai, que irá morar com eles até o próximo caçula nascer. E depois esse homem - que a mãe acredita ser um salvador - irá partir para nunca mais voltar.

Amapola ou Ampola
Amapola não tem curiosidade em relação ao seu nome, que ama e odeia na mesma proporção. Só sabe que foi um presente do pai, um estivador do porto. Ele escolheu porque Amapola, a verdadeira, era a avó daquela menina frágil. E achou que a homenagem - à mulher forte que o colocou no mundo -  poderia abençoar aquele bebê raquítico. O estivador forte, bonito e dono do mundo (como ela gosta de imaginar) foi embora, levando consigo a história daquela mulher e também do nome.

Quando criança, um dos piores sofrimentos de Amapola vinha do seu nome. Seus amigos o achavam feio. Para piorar, Amapola era tímida e magricela, sempre um convite para a transformar na melhor piada do grupo. Seu vizinho Lucas, -  morador da mesma favela desde que se conhecem por gente  -, a chamava de Ampola. Ampola de vacina, ampola de remédio, ampola de injeção. Assim, Amapola acreditou que seu nome significava veneno, ruim e amargo.

Para conseguir sobreviver à miséria e ao nome, acredita que é uma ampola de remédio, mas do bem, que a gente compra na farmácia. Com toda a sua inocência sonhadora, acrescenta mentalmente gotas daquele remédio à comida dos irmãos. Na sua fé inabalável, é capaz de curar e acredita que foram as gotas que salvaram o atual caçula. Aos 8 meses, Nenê (assim que o chamam) teve uma doença ruim. Amapola ou Ampola, como ela gosta de ser, fez de tudo para salvar o menino. Sempre imaginando que na água da mamadeira ou na papinha, ela acrescentava um pouco da ampola da Amapola.

Ampola se descobre Amapola
Aos 14 anos, Amapola chega à adolescência. Sente-se menina no corpo e mulher na obrigação. Lucas, com 17 anos, se sente adulto e poderoso. Mundos opostos, separados apenas por um muro. Ela... firme na jornada de dona de casa e mãe de 8 irmãos. Lucas, um esperto e inteligente negociador (apesar da falta de estudos), se destaca na boca de fumo. Está sempre bem vestido com “roupas de marca” , tem sua arma e sua moto.

Amapola ama Lucas. Em suas histórias, Lucas é sempre o salvador, o príncipe, o guerreiro inalcançável, em seu castelo... do tráfego. As pernas da Amapola tremem quando ouve Lucas gritar: 

- “Lá vai a Amapola, minha ampola de veneno”. 

Em seu mundo tacanho, Amapola não consegue entender que Lucas faz aquilo para chamar sua atenção, porque também a deseja. Um desejo carnal que, para um adulto de 17 anos, pode ser entendido como amor.

Dias desses, Amapola vai a venda comprar arroz, feijão e mais alguma pouca coisa, quando encontra Lucas. O menino - que acredita ser  homem - se aproxima com um gingado malandro e fala no ouvido da garota:

-“Amapola, minha ampola de veneno. Você é mulher agora. Mistura de flor e veneno. Você sabia que seu nome é de flor? Flor linda, mas com espinhos. Quero que você venha morar no meu jardim.”-  Lucas a beija na nuca e vai embora. Deixando Amapola perdida. 

Aquele gesto provoca uma série de sensações e sentimentos que ela desconhece. Amapola se sente mulher desde então. Olha com mais cuidado para seu rosto e corpo no único espelho do banheiro.

Os dias são angustiantes para ela agora. Espera há dias por um novo encontro. Mas não ouve nenhum sinal de que ele está na casa vizinha. Decide então desvendar o significado do seu nome. Vai até a biblioteca pública do bairro e - com vergonha por ser novata naquele ambiente - pede ajuda. Uma mulher oferece dois livros e um dicionário. Amapola acha a procura difícil... sua leitura é frágil. Encontra algo como “Amapola planta arbustiva, armada de espinhos e com folhas achatadas e flores solitárias”.

- "Solitárias... Solitárias..." - isso ela entende.

No livro de botânica, vê a foto de um campo repleto de Amapolas vermelhas. 

- "Que lindas!" - pensa. 

No outro livro vê uma amapola amarela, em solo brasileiro, com suas pétalas finas e sobrepostas nas beiradas. Que frágil...

- "Frágil... Frágil..." - isso ela entende também.

Descobre que Amapola é uma palavra com origem no latim (sabe-se lá o que significa isso) e que em italiano significa “bela flor”. E que em espanhol amapola é também papoula, aquela planta que se transforma em uma espécie de droga. Droga... Lucas aparece novamente na sua mente.

Todas aquelas informações a deixam atônita. 

- "Como um nome pode ter tanta força e beleza" - fica perplexa. Sorri porque se sente enfim importante. Importante para seu pai, que a presenteou com o nome, e também para Lucas que descobriu que ela é Amapola, nome de flor.

Em casa prepara o jantar dos irmãos, colocando além de sabor, gotas da ampola da Amapola. Decide que jantariam na pequena mesa e não com os pratos apoiados no colo como de costume. Arruma a mesa, pratos e copos trincados que têm a sua disposição. Coloca garfos e colheres, prepara o suco e chama os irmãos. Alguns gostam da novidade e outros reclamam. Amapola é irredutível. Todos precisam sentar, meio apertados, mas como uma família.

Mal terminam a refeição, ouvem uma gritaria, barulhos de sirene, tiros e ordem para que não saiam de casa. É a Rota que invade a favela, rotina que todos conhecem, mas que pela primeira vez acontece tão perto. Amapola fica primeiro aliviada por ter exigido que todos estivessem em casa para o jantar. Em segundos lembra de Lucas... claro... Lucas. 

Com certeza, a invasão da polícia tem Lucas como motivação. Há mais de 5 dias que Lucas não aparece. Sons de passos, gritos e uma porta sendo arrombada... mais tiros. Amapola esconde os menores embaixo da mesa, corre para debaixo do sofá e pede que os outros se escondam também. Minutos intermináveis de pânico. Amapola só consegue pensar em Lucas e no encontro no mercadinho. Começa a rezar, mas não lembra a oração. Passa a repetir o seu mantra:

- “Amapola, minha ampola de veneno. Amapola, minha ampola de veneno. Amapola, minha ampola de veneno".

Chora compulsivamente. Tristeza por não poder ser flor no jardim de Lucas. Tristeza pela vida medíocre. Tristeza pela pobreza extrema que vivem. Tristeza por não poder sonhar com um futuro. Tristeza por não conhecer a sua própria história.

Acorda do delírio pelo caçula Nenê, que passa as mãozinhas pelo seu rosto e diz: 

- “não choia, a poliça foi boia”. 

Ela levanta e corre para o portãozinho. Lucas foi baleado pela polícia e levado para que a Rota termine o serviço. Sabe que será mais um moleque a estampar os jornais de amanhã. Pobre, preto, favelado e entregue pelos próprios traficantes como forma de acalmar a sociedade.

Amapola quer parar com esse desatino, em que a vida bandida promete um futuro e ao mesmo tempo entrega a juventude para o carrasco. Com os olhos cheios de lágrimas, vê do outro lado da rua, Pedro - seu irmão de 13 anos -, negociando com um grupo...

Ela sabe que Pedro foi escolhido para ser o novo Lucas na boca. Amapola segura o grito que gostaria de dar, porque sabe que para esse problema não pode usar gotas da sua ampola. Só resta voltar para dentro de casa e chorar como uma Amapola solitária e frágil.

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